Minha Comédia Divina
Quando eu crescer eu quero fazer alguma coisa em que eu possa apenas ficar lendo o tempo todo. Sem obrigação de escrever ou coisa que o valha. Uma década se passou e por incrível que parece não me havia dado conta que realizara meu sonho. Talvez meus sonhos recentes tenham tomado tal direção e gigantamento, que o que uma criança de onze anos pensava se tornou bizarro, enfadonho e nem um pouco digno de nota. Agora, todavia, que paro pra pensar, este ainda é meu sonho e única escapatória. Não nasci, pelo visto, e por milhões de constatações, para ser humano. Nasci para viver na idealização, numa forma inventada por mim mesmo. Sem corpo, pura alma pensante.
O caminho que segui, até encontrar a filosofia, agora me espanta, parece daquelas anedotas que os cafuçus da Bocaina contam. História fantástica digna de um Garcia Marques. Segui todos os passos que me levavam contra meu sonho, sonhei outros sonhos e cada vez mais humano eu ficava. Estou vivendo, velhamente, o mundo que jurava que evitaria.
Parece, agora, que me encontro acordando, prostrado, em frente a uma floresta sombria e nefanda e as feras, incumbidas de coibir minha andança, não parecem com o leão, a loba ou a onça. Será que Virgílio vem me buscar? Será que existe uma Beatrice, uma Virgem e uma Luzia intercedendo por mim? Não creio que meu guia pelos círculos do inferno será tão grande quanto foi para Dante o seu, ou melhor, não acredito em um inferno, um purgatório ou mesmo um céu, dignos, que motivar-me-iam a começar jornada alguma.
A jornada recomeça, estou saindo do internato Pencey, meu guia é um jovem de dezesseis anos, americano, metido a louco. E que todavia, sente tudo que sou. Se posso contar com alguém é com meu velho amigo Holden Caulfield. Se precisei abandonar meus sonhos para que só assim os realizasse, muito bem, a aventura sequer é dantesca, mas me parece que, bem acompanhado como estou, serei capaz de lhe dar fim e cabo. Que seja! Coloco meu chapéu de caçador, presente do Holden, e, tal como ele, viro a aba para trás; aperto-lhe as mãos, levanto-me dessa floresta em que já permaneci tempo demais. Sei lá se foi carência ou coisa assim, abraço meu amigo por ter me encontrado antes que as feras me devorassem, mas ele não se contém e precisa, mais uma vez, zoar comigo:
-Ow, qualé? Sou doido é por mulher. No duro.
Não me contenho e rio, ele ri também. Agradeço sua presença e continuamos sempre em frente. Sinto um alívio estranho no peito, vai saber, acho que é por que, finalmente, estou voltando pra casa.