22 dezembro 2008

O gozo intelectivo (meio que a contra-gosto)


O gozo intelectivo

descarga hormonal desenfreada

Hemácias inxadas

fluxo peni-crani-ano

COMPLEXO


O distúrbio do gozo intelectivo

verdadeira função celular

HUMANA

não depravada

não iniciada


sentimento de putrefação iniciado

em germe

Que se movimenta

Pra frente

Concretude de um hegelianismo inconcreto


O pêlo se eriça

os cabelos se interpõem

as bocas trocam secreções

Desatino

Bebo da boca

a saliva que bebem

da minha

Boca


troco fluídos pra fluir

não sou nada

só sou troca

um troca-troca

fecho os olhos

O intelecto vislumbra olhos fechados

fecho a boca

O intelecto vislumbra a boca fechada


O que eu sou?

Sou moto-contínua

produzo e me reproduzo

Sou você quando come um pedaço de carne

Sou o cadáver que grudou nos seus dentes

Escatologia é um sobrenome do passado-presente

Como teu ar

respiro teu sangue

aspiro teu suor

sou teu pó

e me cheira, me cheire


O gosto do pó na boca

teu gosto impregnado no corpo

teu suor marcado na vista

tua boca aprendida

Presa na braguilha da minha calça


Sou seu eu em mim

Sou você quando se masturba

Sou eu mesmo quando defeco

Somos podres

Somos vivos


O gozo intelectivo?

já deve ter começado

nem sei o quê acontece

gozei!

17 dezembro 2008

Monsenhor Ferreira


Nada mais era como devia ser. Ele se descobria através do buraco da fechadura, através do qual, ele via a si mesmo. Não era bonito, não era inteligente, sequer sabia escrever. Ele se passava por tudo isso, ele lia e materializava-se em si mesmo cada personagem fictício. Pelas aragens em que andava nos últimos tempos se recusava a comer o que quer que fosse que não houvesse colhido. Era-lhe um sufoco andar ruas e mais ruas atrás de comida. Encontrava um pé de amora e se outorgava todos os direitos sobre ele, o que a natureza me deu ninguém há de me tomar. Caminhando pelas cidades ele se defrontava com todos os problemas de sua nova vida, começou por apenas comer o que a natureza lhe dava, andava e andava atrás de pés de manga, goiaba, jabuticaba: frutas.

Ei muleque, o que você está fazendo trepado aí no meu pé de melância?

O que a natureza dá, é meu, ninguém mandou que plantasse minha comida aí onde plantastes. Ninguém, muito menos ainda, e com direito algum, pelo menos não natural, permitiu que plantasse no solo sagrado essas paredes grossas que me impedem de ir e vir. Você é um animal depravado, que passa fome por que aceita que outros passemos.

Vendeu seus pertences, vendeu sua dignidade humana. Com o dinheiro? Usava para acender o fogo que lhe servia de abrigo nas noites frias e solitárias da capital. Dormia o dia inteiro e quando não o fazia tentava a sorte vagando, sozinho, como todos devíamos ser, em busca de alimento.

Perdeu seu senso artístico, arte, para ele, era depravação que os homens se infligiam. Vendeu sua alma para o primeiro transeunte desavisado, que o encontrando nu, em plena marginal pinheiros, não sabia o que fazer com tremenda aparição. Na mesma marginal ele banhava-se, pescava alimentos podres, que seu paladar deformado já nem sabia mais entender, comia o que encontrava pela frente. Em plena marginal caçava capivaras, mas ainda assim se sentia pervertido, por que comer animais que sentem como eu? Ele ficava aturdido com suas próprias inquietações, mas as afastava. Pensar é algo que não faz parte da natureza humana. Humanizava-se no descompasso do dia-a-dia em que cada vez mais anti-naturais nos tornamos.

Seus primeiros medos primitivos começaram a assombra-lo. Sentado, no meio da devassidão, via luzes que passavam por ele, sequer imaginava o que seriam. Eram luzes que corriam, que se perdiam, luzes que ofuscavam a si mesmas. Ele não entendia, perdera esse dom, assitia, apenas, à passagem do tempo, não sabia mais o que era tempo. Dormia e, quando descansado estava, saía em procura de comida. Encontrava árvores frondosas em meio à Avenida Brasil. Subiu nelas com uma agilidade nunca vista, pegava algumas mangas, e sob a mesma árvore que lhe fornecia alimentos, descansava em sua sombra. Foi preso.

Não podemos aceitar um selvagem em nossa sociedade civilizada.

Não podemos permitir uma nudez libidinosa que atente aos nossos filhos.

Não podemos viver em meio a um ser que não tenha grilhões.

Tudo que ouvia era uma negação de sua própria negação em se perder mais do que já estava perdido. Na cadeia não se sentia mal, dormia boa parte do tempo. Ele já não sabia o que era a liberdade. Não precisava de outras pessoas, não precisava de conversa, sequer carinho, muito menos amor. Ele dormia e quando acordava tinha comida em sua caverna. Ninguém se alegrava em ver um selvagem sozinho em uma cela fechada.

Ele têm curso superior?

Por que ele come e bebe sem pagar por nada?

Por que ele não trabalha?

POR QUE ELE ACEITA TUDO ISSO?

Dormia calmamente, acordava e comia. Andava pelos espaços quando encontrava algum. Ele não tinha mais nada a perder. Ele era melhor do que qualquer um já havia sido em todos os tempos. Ele não dependia de nada e de ninguém. Os jornais noticiavam a incrível história do presidiário que debochava de todos os cidadãos. Comia às custas dos impostos, dormia idem, vivia idem. Ele era livre e todo mundo se irritava com isso. Em meio a tantas notícias de jornais começaram a aparecer lunáticos que pensavam o entender, criaram movimentos, queriam a liberdade. Outros diziam que ele era o messias que viera anunciar o fim do mundo. Havia aqueles que chegavam do trabalho tarde e resmungavam.

Mas por que ele pode viver sem trabalhar?

Querida, você não acha injusto eu trabalhar tanto e ele fazer tudo que faz sem ter que fazer nada por isso?

Vejam filhos, vocês falam em comunismo, é isso que vocês querem?

Foi solto no dia 23 se maio, um dia sem importância. Anistiado completamente. A ele foi permitido fazer o que quisesse desde que não incomodasse ninguém. Ele não sabia mais falar, nem pedir, quiçás desejar. Acharam por bem soltá-lo em meio à alguma floresta nativa e virgem, assim o fizeram. Corria nu por entre as árvores, não comia mais capivaras, apenas pinhões, maçãs, framboesas do mato, ervas que já conhecia desde sempre.

O mundo não admitia tanta liberdade assim, tentaram matá-lo por diversas vezes. Abafavam sua voz, segregavam sua imagem, psicos da vida tentavam provar que tudo o que ele queria era atenção e lhe podavam essa necessidade. No meio do mato ele corria. No meio do mato ele escutava a doce melodia de água correndo e não sabia sequer o que era, muito menos se era bom, ruim, bonito ou feio. Sua história corria pelo mundo. As pessoas começaram a imitá-lo. Em pouco tempo milhões desaprenderam tudo que dezenas de séculos de evolução os havia ensinado. Ele não estava nem aí pra nada disso. Corria, zunia, comia e dormia. Tudo em um estilo de passado que de nada ele entendia.

Em todo esse meio tempo ele começou a encontrar outros iguais a ele, não os reconhecia, saciavam seus desejos libidinais e iam embora. Os filhos que dessas gerações nasciam, permaneciam com as mães pelo tempo necessário até que pudessem se defender sozinho; só deus sabe do quê. Animais selvagens já não existiam, os humanos haviam matados todos. De si mesmos não precisavam mais defender-se, poucos eram os verdadeiramente selvagens. Quando os grandes líderes mundiais viram o caminho de liberdade que os homens estavam tomando, quando a Gucci parou de vender seus perfumes, a Channel seu corte de cabelo e a Dolce & Gabbana suas roupas, o mundo ruiu. Havia os verdadeiramente livres que andavam pelas florestas de pedra, nus; e os que ainda se chocavam com tudo isso. Na guerra de todos contra todos que os poderosos travaram, só os poderoso morreram. Os humanos não sabiam mais o que era lutar. Quando “pressentiam” o perigo, se escondiam. O mundo voltou a ser o mundo de antes de tudo. O homem voltou ao seu estado natural, mas tudo fora muito rápido. Ele, o primeiro, ainda tinha apenas 37 anos. Andava pelo mundo, não queria saber de ninguém, só andava.

Aos 37 anos ele era o primeiro homem desde muito tempo. Dormia, comia, se escondia. Encontrava-se com outros tantos seus iguais, mas sequer sabia o que era ser igual ou diferente. Ele começou a aprender que havia pessoas iguais a ele no mundo. A bola de neve voltou a se formar. Vestiu-se com folhagens, causou frisson. Usava colares, lançou moda. Construiu a primeira casa, virou arquiteto. Ele virou a todos e, depois de ter colocado alguns pedaços de madeira sobre um terreno, gritou:

Isso é meu. Foram ingênuos o suficiente e lhe acreditaram. Criou a sociedade civil.

O homem é mesmo um animal depravado.

15 dezembro 2008

Partir-se


Platonizar
Pra depois
Com muita fúria e combustão
desplatonizar um amor
Numa vertigem terrível

Imaginar nosso amor
Imaginarmo-nos juntos
Deitar-me sobre ti
E sentir teu útero pulsando
Cair nesse abismo
E atingir você

Beijar de cada lágrima sua
Um suor de meu corpo
E um grito de nossos orgasmos

Apertar meu peito sobre teu torço
Nus beijando e sussurando
Sair com o carro a toda
Estraçalhar sobre um barranco
E subverter nosso amor
Em lágrima e sangue
Que mais uma vez me deixa beber

Imaginar nosso desejo
Imaginarmo-nos em nossa paixão

Apertar-te cada vez mais forte
E nem querer que haja respiração
Não perder tempo algum
Cegos

Gritar com você
Apanhar de você
Trair enquanto se é traído
Subverter o amor
Transforma-lo numa luta
Impor-me sobre seu corpo

Desejar cada orifício ou poro
Entendê-los cada vez que penetro em seus mistérios
Sentir espamos
Arrepios
O desejo da cópula é o ir-se embora
Um outro dia

Tirar sua roupa
Vestir a minha
Partir

12 dezembro 2008

Luminescência



Ela era uma bailarina, eu era um homem. Num trovão da noite passada, materializara-se carne, eu já não era carne tinha muito tempo. Eu estava andando pelo tumultuoso centro periférico, estendido, não entendo muito bem essas denominações ainda, sei que era algum ponto bem lotado e cosmopolita, ok, ok, manerarei no uso dos termos. A gente se encontrou meio que ao acaso, ela girava em meio às gentes e eu tentava me desvencilhar delas, em passos tangados, de contorcionismo e anti-esbarrões. Mesmo com tanta técnica nos esbarramos. Não parei, não olhou. Metrô cheio, ela era francesa, eu era charlatão. Sentei-me perto, seu tutu esvoaçando em minha vista embaralhada. Peguei sua mão. Me olhou toda espantada. A doutrina que eu professava agora me impunha certas ações que eu sequer ousaria tomar. Mas tomei. Beijei-lhe os dedos. Se arrepiou toda.
Baldeação. Trocamos de corpo novamente, agora eu era japonês e ela era pequenina. Esperávamos o próximo trem passar, ela mirou meus olhos, enrubesci. Falei alguma coisa numa língua que agora não me lembro. Agarrou-me forte e chorou nos meus braços. Entramos e seguímos nossos trajetos. Juntos. As pessoas que passavam não olhavam e perdiam o espetáculo de transmutações que fazíamos. Olhávamos pela janela que dava para paredes sólidas e através delas víamos mais do que queríamos. Enxugava suas lágrimas com a língua, que ainda me era muito estranha. Por trás de um par de paredes rugosas enxergamos um elefante alado que nos assustava muito, que já fazia parte do nosso imaginário popular. Dormimos abraçados ocupando um vagão inteiro, éramos quatro, nós dois e nossos egos. Saímos voando ali de dentro para tentar enxergar o que nos tornava carne e o que nos tirava dela. Luminescência.
Agora eu era herói, ela era meu cavalo que só falava inglês. Cavalgávamos juntos pelas colinas paulistas inexistentes mas que fixávamos ao longe. Dois lençóis um por sobre o outro vagando por uma imensidão campestre sem fim. Num prado não muito distante do vale do Anhangabaú depusemos armas. Abrimos mão das palavras e todas as suas munições. A chuva que caía me lembrava que eu não queria mais lembrar de nada, e não lembrava, pra pensar pensamentos abstratos precisamos de palavras e já não as tínhamos mais. Sensações. Árvore que cai próxima, barulho insondável sem quem o ouça. Chuva caindo sobre a água de um lago que lançava mais ainda, pra cima. Terremoto corpóreo que balançava nossas almas e despedaçava nossos corações. Agora dormíamos juntos como quase um só corpo, eu montado, ela submissa. Não tínhamos palavras. Conversávamos com os olhares que jogávamos um ao outro feito bolinha de ping-pong. Seus olhares consumiam meus ossos de remorso. Meus queimavam fundo em sua garganta.
Caiu um raio, outra explosão, mais um corpo feito carne. Eu era eu mesmo, ela era quem fora outrora, e um outro se vislumbrava em nós. Tríptico. Triângulo. Dialética? Acho que só essa última que não. Ele era rubro e seu cabelo anunciava um incêndio. Em si ele continha tudo o que até então estávamos sendo. Em cada um cravou um beijo fundo no peito. E com a língua quente de deus imanente, derreteu tudo que estava congelado. Fez-se primavera. Pude voltar a amá-la. E ela pode voltar a me amar e amar o outro eu. Juntos éramos uma santíssima trindade esquelética. Eu me beijava nele, que beijava ela, que me beijava em mim mesmo. Começamos a arder e 3 chamas juntas se tornaram uma. Amávamos em nós mesmos e em cada um de nosso outro. Num gozo fleumático apagamos o incêndio que alastrávamos em todo o Ibirapuera. Fomos embora.
Ponto de ônibus. Eu era ela, bailarina pequenina francesa equína, ela era eu, um homem charlatão heróico e japonês. O outro era o outro de sempre, ainda não aprendera a brincar de se transmutar. Talvez fosse devido mencionar que ele ganhara alguns músculos e outros tantos pelos ruivos, mas não sei se vem ao caso. Na catraca nos juntamos pra novamente, feito um, pagar só uma meia. Não sabíamos pra onde o ônibus nos levaria, talvez lugar algum, mas nessa peregrinação, qualquer lugar era um lugar algum. Conversávamos alto com palavras emocionadas sobre a graça de nossas vidas, e como desde ontem num raio eu me tornara carne e ele já não era carne a tanto tempo, que nem sequer lembrava o gosto que ele mesmo têm. O outro nos olhava com assombro e achava graça. Eu falava de um pliê bem dado e ele arrematava com alguma frase japonesa que acho que nem ele mesmo sabia o que significava, mas estávamos felizes. Beijava ele e o outro assistia mudo. Eram tantas inversões e transtornos que eu me perdia e tinha horas que achava que era eu mesmo beijando ele que me olhava como outro. Mas nem sei. Eu era bailarina e ela era meu herói. Nos abraçamos e com inveja o outro com seu calor nos fundiu.
Eu era eu mesmo e ela em mim, agora eu era nós, e o outro era ele. Beijávamos ele que parecia se entusiasmar com tanta concupiscência. O motorista olhava para o cobrador que olhava para nós, mas já fazia tanto tempo que o mundo não olhava pra enxergar que passávamos despercebidos. E continuávamos nesse transloucado bacanal. Eu sentia pulsar forte dois corações se agitando por um externo. Colávamos nosso corpo nele. A trindade agora era díade, composta por três, todavia. Nós pegávamos o corpo dele e sentíamos e não sentíamos, era um simulacro de sentir em que cada, ora um de nós sentia quando o outro só pegava, era uma onda com sua altura e baixeza. O ônibus parou e foi como se soubéssemos que tínhamos que descer, ele não, ficou nos olhando sem saber o que fazer, descemos e puxávamos ele conosco. Não sabíamos onde estávamos, ele parecia que sim, disse que estava em casa. Casa, perguntamos em uníssono. Sim, ele respondia todo mole, foi aqui que eu sempre existi, não entendíamos ao certo, mas fazíamos que sim. Ele, novamente nos queimando, nos desfundiu. Voltáramos a ser uma tríade, ou trindade, como queira. Ele olhou para trás e se despediu. Correndo em nossa direção derrubou eu e ela, que agora éramos nesse jeito, e sentíamos de volta todo o amor de nossa peregrinação. Beijávamos nossas três bocas e nem sequer sabia qual era a de quem. Tocávamos nossos corpos em uma troca pegajosa que ensinava ao outro a se transmutar. Era eu e ela como tais, num calor amoroso sem igual, enquanto o outro era eu, e depois era ela, e depois era um canário, e depois não era nada, pra logo em seguida ser beleza, luxuria, trocadilhos, paixão. O outro se tornava fleuma, melancolia, desespero, fugacidade, sexo. O outro nos absolvia de todos nossos pecados em sua forma de perdão. Éramos três abençoados e agraciados com todas as formas de nosso outro. Tudo que o outro fazia pra mim e pra ela, ao mesmo tempo fazia pra si mesmo. Ele entendia o que era transmutar-se, ele era luminescência, essência luminosa em toda sua mutabilidade grandiosa. Esquecíamos que não podíamos nos lembrar e nos lembrávamos de tudo que acontecera desde nossa chegada por essas paragens. O outro se encarnava em tantos outros que ele lembrava de coisas que sequer conhecia, e ensinava pra ela e para mim.
Eu já falava alemão, mandarim, ela dançava em descompasso uma valsa para o nosso deus sol velado em flor. Sabíamos morrer e renascer outra vez. Aprendemos como multiplicar o vinho e transformar água em pão. Inventávamos e desinventávamos metafísicas grandiosas, cada qual sua própria filosofia. Amávamo-nos, eu, ela e o outro. Sabíamos beijar de todas as formas. O outro em sua forma Romeu se matava por nos ver morta, sua Julieta. Como vampiro sugava nosso sangue e nos convertia em imortais. E voávamos pela casa do outro, que ainda não sabíamos o nome, mas ficava em algum lugar entre a Frei Caneca e a rua Augusta. Olhamos para cima e já tinha um sol de meio dia olhando de soslaio e censurando toda essa nossa sodomia. Fazíamos de conta que não era conosco e continuamos com nosso amor. Agora o outro era Deus e ela e eu éramos os Vossos filhos. Deus amava seus filhos talvez mais vigorosamente do que esses eram capazes. Deus só agora entendia o amor, foram seus filhos que lhe ensinaram a poder ter tudo que agora tinha. Deus lançava raios em nossos corpos e virávamos montes de pós e cinzas, e ria, enquanto nos transmutando de demônios travávamos uma verdadeira guerra fria. Éramos Deus e Demônios. Éramos o que queríamos. E ninguém podia fazer nada.
Trançamos nossos corpos e viramos corda grossa, que se afinava em nossa luxuria de nos querer cada vez mais juntos, virávamos fio, virávamos linha, virávamos ponto. Por fim éramos o nada positivamente repleto de tudo. Em nossa forma de tudo embriagamos o povo, iludimos os santos, sobrepujamos toda aquela putaria. O mundo era o que nascera pra sempre ser. Festa. No meio da brincadeira, o sol lançou nos um olhar sério. Que feito raio, cristalizou-nos em nossas formas humanas. Eu era homem, ela era mulher, o outro era o outro. Nos abraçávamos e éramos repelidos. Não conseguíamos mais nem um tipo de união. Era isso, o que fora fora, e agora éramos cada um de nós sozinhos. Paulistanos soltos em dispersão pela cidade grande, faminta, pantaleona. Olhei pra ela novamente que olhou pro outro que olhou para mim. Nossas lágrimas gelavam nossos corpos nus e frágeis. Não éramos mais deuses. Não éramos nem mesmo mais nós. Sabíamos que tudo que experimentáramos nunca mais ia acontecer. Nunca ninguém mais seria capaz de se amar e amar outro em tantas formas. Muss es sein?? Ela me replicava com a voz mais triste, em fuga, que eu já ouvira. Es muss sein!! Es muss sein!! Eu respondia aos berros. Mas ao olhar nos olhos outros eu sabia: Tem de ser assim?? Assim tem que ser!! Assim tem que ser!! E minha voz já não era mais de fuga, nem a dela, nem a do outro. Se tinha de ser assim, seria de outra forma.

11 dezembro 2008

Semente de Uvaia











Cinco horas da manhã e eu sei absolutamente o que eu quero. Quero aquele arrepio na nuca que me faz lembrar que aqui por perto, quando estou sozinho, seus olhos me seguem. Aquele ter todos os pelos levantados num incômodo sobrepujar da minha pele. Cada folículo em espasmo, cada partícula epidérmica lutando, à flor-da-pele, pra sentir um novo toque seu. Seu olhar de longe que me queima e petrifica. Eu quero aquele beijo seu que suga meu sangue pela boca, amolece todos os meus dentes e leva embora o movimento do coração. Eu só quero você. Que penetre fundo na alma cada vez que me cantar com a voz doce, em meus ouvidos, e num sussurro lingual mude minha sintonia. Sua pele quente em contanto com a minha fria, o chiado que o oximoro produz em nosso encontro. Eu quero a umidade chuvosa que você é da mesma forma que, e eu sei que sim, você me quer um domingo nevoso. Você me quer seu homem e eu sei que quer, quer meu corpo enlaçando o seu, minha alma convergindo em sua. Você quer meus olhos lunares que te esfriam, da mesma forma que quero os seus solares que erupcionam o meu sangue. Eu quero que a gente se ame até o parar de bater do coração. Você quer sentir meu pêlo ereto roçando pelo desnudamento do seu corpo. Eu quero sentir dedos macios sentenciando cada milímetro da minha face. Eu quero esse torço nu, e toda a brancura que vêm com ele.
Mudo de posição, não consigo parar de pensar em cada pedaço seu que eu quero. Acendo um cigarro e fumo bem lentamente. O roupão que eu uso só me faz perceber que não estou pelado por pouco. Tiro os óculos pra repousar, não sei se a vista, ou eles mesmos, sobre a banqueta que aqui me enxerga. Com suas pernas finas eu penso nas tuas, com seu comprimento estático eu penso no teu. Levanto e começo a digitar de pé. A chuva lá fora, eu toco, e penso que o que me molha também deve molhar você, e estar numa mesma, efêmera, condição me faz bem. Engulo a chuva que o meu céu da boca derrama toda vez que penso. Não quero mais pensar. Abro bem as janelas, as escancaro. Começo ver toda minha casa salpicada por um choro que talvez devesse ser o meu. Seguro uma cintura imaginária com uma mão enquanto a outra digita em fúria cada palavra que eu queria que fossem colhidas por uma tela ocular. Danço uma valsa que você escreveu para mim. Danço uma valsa com você que é só imagem. A fumaça que queima a minha garganta é o fantasma de tua língua, a pêra que consumo em meus lábios são os lábios teus. Estou de pé dançando com uma idéia que nem sequer sei se condiz, uma representação que não representa nada. Em minha cabeça a negação da negação.
Não agüento mais ficar pensando, saio pela rua. Aqui onde moro as ruas são largas, mas isso não deve dizer nada para você. Os reflexos que eu vejo em cada gotícula aquosa que caí é de uma lua que se escondeu, feito o amor que agarra fundo no peito e que sequer se deixa transparecer. Meus pés maltratam as calçadas e pisam fundo, cada vez mais fundo. Eu me lembro das calças amarelas. Do tiro que eu daria mais a pouco em minha cabeça pra tirar o pensamento que não saía de você. De quantos em quantos eu me angustiava mais e mais. A promessa que me fizera em silêncio só eu percebera. Ando pelas ruas, desisto das calçadas, o eco que meus passos faziam até a pouco só pareciam querer me lembrar que estava só, na chuva, ouvindo nada mais a não ser eles. Meu nariz começa a escorrer e percebo que não é gripe. Sinto o gosto doce do sangue que as veias estouradas faziam jorrar. Meu nariz não era mais nada, virou só pó. Escuto passos que não são meus e que nem ao menos parecem anunciar a presença de alguém. Pego de abrigo uma marquise de loja velha, pelo vidro da vidraça eu vejo o gelado da minha própria presença e me toco. Sou liso, frio e ao mesmo tempo borbulhante. Os onibus começam a passar o que me deixa feliz, as pessoas que dentro deles passam se beijam sem se saberem. Vejo uma casal manso que se agarra selvagem. Dois idosos de mãos dadas a um mesmo guarda-chuva que só guarda lembranças emboloradas. O meu embotamento é todo seu, a minha fé também. Um raio ilumina a rua escura e me faz lembrar que não existe para-raio para o que vem de dentro. E minha paraplegia cerebral é miraculosamente curada por algum pastor que grita em plena madrugada as verdades de um amor que sequer existe. Amor? Amor é casa limpa e as contas pagas. Amar é encontrar em alguém aquilo que não somos capazes de encontrar em nós mesmos.
Beijo tua boca de mentira e sinto seu corpo ausente. Pelas ruas eu sei que não existo, não sou pessoa, sou transeunte. Transeunte em transe alcaloidico. Sento sob a marquise e durmo abraço com o casaco de pele de vison que eu vejo através do vidro. As pessoas que passam por mim me atiram vis metais, não entendo o porquê. Só o que eu mendigo é um abraço seu, é sentir o nosso oximoro outra vez. O telefone toca, estou em casa ainda, atendo. Não saíra por um só instante do mesmo lugar, mas fizera uma viagem através de você. Do outro lado escuto sua voz que diz que me ama. Também te amo, durmo feliz.

09 dezembro 2008

O Casal Desigual



A metalinguagem é o escrever sobre aquilo que se está escrevendo, ou viver aquilo que se está vivendo. Dois anos, ou mais, sem viver minha escrita. Dois anos, ou mais, sem escrever minha vida.
Dos amores eu levo as dores de recordar momentos bons, perdidos. Das dores uma miríade de sensações boas por não mais as ter. Hoje é Terça-feira, melhor dia impossível pra começar, ou recomeçar. Não se deve fazer nada de novo nas terças, os dias? As segundas, dias eleitos.
De todos e todas
você escolhi
das bocas e beijos
a sua eu quis
de tantos abraços
em seus braços quedei-me
Esse é um versinho inacabado de algo que já acabou faz tempo. Sonhei com a princesa encantada desse velho sapo. Clichês, transávamos. A falta de clichê em tudo isso foi o reviver uma Julieta que minha família Silva detestava. Não que eu tenha voltado a quedar-me na loucura de dias amenos, ou mesmo afagar-me com o tempo que apenas escorre, não passa, de um interior pegajoso. Eu estou me reinventando. O corpo que essa alma habita é o mesmo que a faz viver com graça, de graça?
Eram 3h da manhã, a boca que eu beijava era aquela que eu condenava, o corpo que me sublimava não era o corpo da espera. O andar pela rua é que valeu. Andar pelas ruas com o mesmo medo em que andei pela vida. A vida é triste porque me coloca uma repetição tediosa. Não existem pessoas, apenas a mesma pessoa. Senti naqueles braços, naquele rosto, um engano proposital. Virei e lhe falei: “Faz-me violino e arrebenta minhas costelas em um concerto feito pra mim em ré maior”. Reverberei sonoridades. Andava pelas ruas de mãos dadas, consumava em fato o que nunca fui capaz de consumar em existência. Virava-me a nuca para que lhe imprimisse no pescoço a suavidade de minhas mãos poetas.
A cada toque que colho
Na frondosa altura de teu corpo
Me colho desespero
De quem só plantara ternura
O sussurro que damos agora
É o prelúdio do abraço que descola
Me desprego de seu corpo
Pra pregar me em tantos outros.
A princesa foi-se embora e o sapo ficou. Barraca do beijo, pode chegar que a disponibilidade e a boa-vontade acolhem e dão morada para todo mundo. A muitos dei uma felicidade que eu não tinha mais. O sapo era beijado, mas continuava sapo. Olhava por cima da varanda e via um horizonte que queria pegar. O sapo virou uma puta que se atira pra se encontrar.
Em cada corpo alheio
Me encontrava em minha perda
E em cada perda minha
Só podia te encontrar.
O sapo não fora convidado, mas pruma festa no céu resolveu ir. Como não sabia voar, arrumou carona num Set transcendente de musicas empresariais de um tal Disco Joquey. Na festa, feito Geni, não se impressionava com os mancos, os cacoetes, os afetados e os bailarinos. Dançava num rodopio telúrico, beijava numa devassidão homérica, amava numa sublimidade platônica.
Pobre manco
quedava-se em seu próprio lugar
Se suspendia pra novamente cair.
Verdadeira reviravolta lunar.
A queda, para o pobre manco
era apenas o primeiro movimento
De uma valsa da qual não sabia dançar
Em festa de Enhabú, Jacú não vai. O sapo não era daqueles que se impressionavam com qualquer tipo de jargão. E continuando numa quase fúria, ele bebia e sorria, beijava e quedava a todas as suas vontades e emoções. Bacanal lisérgico. E o sapo não se convencia que a felicidade existia e se afundava sempre mais, numa festa no céu, da qual nem havia sido convidado. Quando deu por si, estava sozinho na pista, a festa acabara. E agora José? Sapo não é bobo e nem choroso pra chorar sobre as pitangas derramadas. De cima de uma nuvenzinha olhou pra baixo, bela queda, é só vertigem, apenas linguagem, saltou.
A queda é feito parto
Saímos de um mundo
Que conhecemos
Pruma imensidão desconhecida
Pulo do alto de minha sacada
A brisa me apara e eu me aparo em você.
O sangue fugidio
Me escapa pelas temperas
Vontade de cair daqueles que estão em queda
Angústia que agarra fundo no peito
Só a queda liberta.
No seu se libertar o sapo não via nada que passava ao seu redor, aviões que lhe acenavam com a asa presa, imóvel. Pássaros que voam sem saber o porquê de o fazer. O sapo suspenso, caia, e sabia o porquê, se parecia um vôo é que ele premeditara todo seu despregamento do céu. O vento que lhe soprava entre as orelhas era um sopro verde, anil, multicolor no branco prismático. Encontrou o chão, beijou-lho solo, virou um príncipe.
O amor é fuga
Incapaz de se pegar
Na sua fugacidade opaca
Se torna metafísica
Ele descreve o ser
Quando desaprende
O que é ser?
Ser é estar no momento
Se sou amor
É por que estou apaixonado.
A estapafurdia do sapo era pensar que o chão era mole, o baque foi surdo, a (re)percursão era grave. Sisudo de tudo, e triste com a vida, o sapo não era mais. O amar é uma queda que se escolhe, é um salto que se dá. Quando menos se espera a decisão já está tomada, a vertigem é inevitável e só se resta aproveitar o ar. O amor louco é queda acima do O2, é respirar o raro efeito do ar rarefeito. É se encontrar dissolvido e dissoluto no meio de partículas espalhadas que não sabem conversar. O príncipe fizera sua escolha quando ainda não se era; era nada. A boca que fizera-se pra beijar, numa rara ocasião rinítica, agora respirava fundo. A queda foi feia. As costelas de tocar não ressoavam mais. Serenata noturna de um sonho de verão que fugiu-lhe feito areia ampulhêtica.

Amar é se perder de si
Se encontrar num outro eu
Que te seja ao mesmo tempo 3
Amar é um ménage a trois
Que se consuma entre dois eus perdidos
Ao se encontrarem
Amar é o espelho na frente do espelho
Para amar, a gente tem que seguir aquela ilusão de caminho.
O príncipe ama, e só. E se ama é por que voltou a se amar. Não há amor entre dois se um dos dois não se ama de igual forma. O narcisismo é o prenúncio retumbante, feito as cornetas cavalariças, é a marcha nupcial de Mendelssohn.