12 dezembro 2008

Luminescência



Ela era uma bailarina, eu era um homem. Num trovão da noite passada, materializara-se carne, eu já não era carne tinha muito tempo. Eu estava andando pelo tumultuoso centro periférico, estendido, não entendo muito bem essas denominações ainda, sei que era algum ponto bem lotado e cosmopolita, ok, ok, manerarei no uso dos termos. A gente se encontrou meio que ao acaso, ela girava em meio às gentes e eu tentava me desvencilhar delas, em passos tangados, de contorcionismo e anti-esbarrões. Mesmo com tanta técnica nos esbarramos. Não parei, não olhou. Metrô cheio, ela era francesa, eu era charlatão. Sentei-me perto, seu tutu esvoaçando em minha vista embaralhada. Peguei sua mão. Me olhou toda espantada. A doutrina que eu professava agora me impunha certas ações que eu sequer ousaria tomar. Mas tomei. Beijei-lhe os dedos. Se arrepiou toda.
Baldeação. Trocamos de corpo novamente, agora eu era japonês e ela era pequenina. Esperávamos o próximo trem passar, ela mirou meus olhos, enrubesci. Falei alguma coisa numa língua que agora não me lembro. Agarrou-me forte e chorou nos meus braços. Entramos e seguímos nossos trajetos. Juntos. As pessoas que passavam não olhavam e perdiam o espetáculo de transmutações que fazíamos. Olhávamos pela janela que dava para paredes sólidas e através delas víamos mais do que queríamos. Enxugava suas lágrimas com a língua, que ainda me era muito estranha. Por trás de um par de paredes rugosas enxergamos um elefante alado que nos assustava muito, que já fazia parte do nosso imaginário popular. Dormimos abraçados ocupando um vagão inteiro, éramos quatro, nós dois e nossos egos. Saímos voando ali de dentro para tentar enxergar o que nos tornava carne e o que nos tirava dela. Luminescência.
Agora eu era herói, ela era meu cavalo que só falava inglês. Cavalgávamos juntos pelas colinas paulistas inexistentes mas que fixávamos ao longe. Dois lençóis um por sobre o outro vagando por uma imensidão campestre sem fim. Num prado não muito distante do vale do Anhangabaú depusemos armas. Abrimos mão das palavras e todas as suas munições. A chuva que caía me lembrava que eu não queria mais lembrar de nada, e não lembrava, pra pensar pensamentos abstratos precisamos de palavras e já não as tínhamos mais. Sensações. Árvore que cai próxima, barulho insondável sem quem o ouça. Chuva caindo sobre a água de um lago que lançava mais ainda, pra cima. Terremoto corpóreo que balançava nossas almas e despedaçava nossos corações. Agora dormíamos juntos como quase um só corpo, eu montado, ela submissa. Não tínhamos palavras. Conversávamos com os olhares que jogávamos um ao outro feito bolinha de ping-pong. Seus olhares consumiam meus ossos de remorso. Meus queimavam fundo em sua garganta.
Caiu um raio, outra explosão, mais um corpo feito carne. Eu era eu mesmo, ela era quem fora outrora, e um outro se vislumbrava em nós. Tríptico. Triângulo. Dialética? Acho que só essa última que não. Ele era rubro e seu cabelo anunciava um incêndio. Em si ele continha tudo o que até então estávamos sendo. Em cada um cravou um beijo fundo no peito. E com a língua quente de deus imanente, derreteu tudo que estava congelado. Fez-se primavera. Pude voltar a amá-la. E ela pode voltar a me amar e amar o outro eu. Juntos éramos uma santíssima trindade esquelética. Eu me beijava nele, que beijava ela, que me beijava em mim mesmo. Começamos a arder e 3 chamas juntas se tornaram uma. Amávamos em nós mesmos e em cada um de nosso outro. Num gozo fleumático apagamos o incêndio que alastrávamos em todo o Ibirapuera. Fomos embora.
Ponto de ônibus. Eu era ela, bailarina pequenina francesa equína, ela era eu, um homem charlatão heróico e japonês. O outro era o outro de sempre, ainda não aprendera a brincar de se transmutar. Talvez fosse devido mencionar que ele ganhara alguns músculos e outros tantos pelos ruivos, mas não sei se vem ao caso. Na catraca nos juntamos pra novamente, feito um, pagar só uma meia. Não sabíamos pra onde o ônibus nos levaria, talvez lugar algum, mas nessa peregrinação, qualquer lugar era um lugar algum. Conversávamos alto com palavras emocionadas sobre a graça de nossas vidas, e como desde ontem num raio eu me tornara carne e ele já não era carne a tanto tempo, que nem sequer lembrava o gosto que ele mesmo têm. O outro nos olhava com assombro e achava graça. Eu falava de um pliê bem dado e ele arrematava com alguma frase japonesa que acho que nem ele mesmo sabia o que significava, mas estávamos felizes. Beijava ele e o outro assistia mudo. Eram tantas inversões e transtornos que eu me perdia e tinha horas que achava que era eu mesmo beijando ele que me olhava como outro. Mas nem sei. Eu era bailarina e ela era meu herói. Nos abraçamos e com inveja o outro com seu calor nos fundiu.
Eu era eu mesmo e ela em mim, agora eu era nós, e o outro era ele. Beijávamos ele que parecia se entusiasmar com tanta concupiscência. O motorista olhava para o cobrador que olhava para nós, mas já fazia tanto tempo que o mundo não olhava pra enxergar que passávamos despercebidos. E continuávamos nesse transloucado bacanal. Eu sentia pulsar forte dois corações se agitando por um externo. Colávamos nosso corpo nele. A trindade agora era díade, composta por três, todavia. Nós pegávamos o corpo dele e sentíamos e não sentíamos, era um simulacro de sentir em que cada, ora um de nós sentia quando o outro só pegava, era uma onda com sua altura e baixeza. O ônibus parou e foi como se soubéssemos que tínhamos que descer, ele não, ficou nos olhando sem saber o que fazer, descemos e puxávamos ele conosco. Não sabíamos onde estávamos, ele parecia que sim, disse que estava em casa. Casa, perguntamos em uníssono. Sim, ele respondia todo mole, foi aqui que eu sempre existi, não entendíamos ao certo, mas fazíamos que sim. Ele, novamente nos queimando, nos desfundiu. Voltáramos a ser uma tríade, ou trindade, como queira. Ele olhou para trás e se despediu. Correndo em nossa direção derrubou eu e ela, que agora éramos nesse jeito, e sentíamos de volta todo o amor de nossa peregrinação. Beijávamos nossas três bocas e nem sequer sabia qual era a de quem. Tocávamos nossos corpos em uma troca pegajosa que ensinava ao outro a se transmutar. Era eu e ela como tais, num calor amoroso sem igual, enquanto o outro era eu, e depois era ela, e depois era um canário, e depois não era nada, pra logo em seguida ser beleza, luxuria, trocadilhos, paixão. O outro se tornava fleuma, melancolia, desespero, fugacidade, sexo. O outro nos absolvia de todos nossos pecados em sua forma de perdão. Éramos três abençoados e agraciados com todas as formas de nosso outro. Tudo que o outro fazia pra mim e pra ela, ao mesmo tempo fazia pra si mesmo. Ele entendia o que era transmutar-se, ele era luminescência, essência luminosa em toda sua mutabilidade grandiosa. Esquecíamos que não podíamos nos lembrar e nos lembrávamos de tudo que acontecera desde nossa chegada por essas paragens. O outro se encarnava em tantos outros que ele lembrava de coisas que sequer conhecia, e ensinava pra ela e para mim.
Eu já falava alemão, mandarim, ela dançava em descompasso uma valsa para o nosso deus sol velado em flor. Sabíamos morrer e renascer outra vez. Aprendemos como multiplicar o vinho e transformar água em pão. Inventávamos e desinventávamos metafísicas grandiosas, cada qual sua própria filosofia. Amávamo-nos, eu, ela e o outro. Sabíamos beijar de todas as formas. O outro em sua forma Romeu se matava por nos ver morta, sua Julieta. Como vampiro sugava nosso sangue e nos convertia em imortais. E voávamos pela casa do outro, que ainda não sabíamos o nome, mas ficava em algum lugar entre a Frei Caneca e a rua Augusta. Olhamos para cima e já tinha um sol de meio dia olhando de soslaio e censurando toda essa nossa sodomia. Fazíamos de conta que não era conosco e continuamos com nosso amor. Agora o outro era Deus e ela e eu éramos os Vossos filhos. Deus amava seus filhos talvez mais vigorosamente do que esses eram capazes. Deus só agora entendia o amor, foram seus filhos que lhe ensinaram a poder ter tudo que agora tinha. Deus lançava raios em nossos corpos e virávamos montes de pós e cinzas, e ria, enquanto nos transmutando de demônios travávamos uma verdadeira guerra fria. Éramos Deus e Demônios. Éramos o que queríamos. E ninguém podia fazer nada.
Trançamos nossos corpos e viramos corda grossa, que se afinava em nossa luxuria de nos querer cada vez mais juntos, virávamos fio, virávamos linha, virávamos ponto. Por fim éramos o nada positivamente repleto de tudo. Em nossa forma de tudo embriagamos o povo, iludimos os santos, sobrepujamos toda aquela putaria. O mundo era o que nascera pra sempre ser. Festa. No meio da brincadeira, o sol lançou nos um olhar sério. Que feito raio, cristalizou-nos em nossas formas humanas. Eu era homem, ela era mulher, o outro era o outro. Nos abraçávamos e éramos repelidos. Não conseguíamos mais nem um tipo de união. Era isso, o que fora fora, e agora éramos cada um de nós sozinhos. Paulistanos soltos em dispersão pela cidade grande, faminta, pantaleona. Olhei pra ela novamente que olhou pro outro que olhou para mim. Nossas lágrimas gelavam nossos corpos nus e frágeis. Não éramos mais deuses. Não éramos nem mesmo mais nós. Sabíamos que tudo que experimentáramos nunca mais ia acontecer. Nunca ninguém mais seria capaz de se amar e amar outro em tantas formas. Muss es sein?? Ela me replicava com a voz mais triste, em fuga, que eu já ouvira. Es muss sein!! Es muss sein!! Eu respondia aos berros. Mas ao olhar nos olhos outros eu sabia: Tem de ser assim?? Assim tem que ser!! Assim tem que ser!! E minha voz já não era mais de fuga, nem a dela, nem a do outro. Se tinha de ser assim, seria de outra forma.

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