30 janeiro 2009


Minha Comédia Divina

Quando eu crescer eu quero fazer alguma coisa em que eu possa apenas ficar lendo o tempo todo. Sem obrigação de escrever ou coisa que o valha. Uma década se passou e por incrível que parece não me havia dado conta que realizara meu sonho. Talvez meus sonhos recentes tenham tomado tal direção e gigantamento, que o que uma criança de onze anos pensava se tornou bizarro, enfadonho e nem um pouco digno de nota. Agora, todavia, que paro pra pensar, este ainda é meu sonho e única escapatória. Não nasci, pelo visto, e por milhões de constatações, para ser humano. Nasci para viver na idealização, numa forma inventada por mim mesmo. Sem corpo, pura alma pensante.
O caminho que segui, até encontrar a filosofia, agora me espanta, parece daquelas anedotas que os cafuçus da Bocaina contam. História fantástica digna de um Garcia Marques. Segui todos os passos que me levavam contra meu sonho, sonhei outros sonhos e cada vez mais humano eu ficava. Estou vivendo, velhamente, o mundo que jurava que evitaria.
Parece, agora, que me encontro acordando, prostrado, em frente a uma floresta sombria e nefanda e as feras, incumbidas de coibir minha andança, não parecem com o leão, a loba ou a onça. Será que Virgílio vem me buscar? Será que existe uma Beatrice, uma Virgem e uma Luzia intercedendo por mim? Não creio que meu guia pelos círculos do inferno será tão grande quanto foi para Dante o seu, ou melhor, não acredito em um inferno, um purgatório ou mesmo um céu, dignos, que motivar-me-iam a começar jornada alguma.
A jornada recomeça, estou saindo do internato Pencey, meu guia é um jovem de dezesseis anos, americano, metido a louco. E que todavia, sente tudo que sou. Se posso contar com alguém é com meu velho amigo Holden Caulfield. Se precisei abandonar meus sonhos para que só assim os realizasse, muito bem, a aventura sequer é dantesca, mas me parece que, bem acompanhado como estou, serei capaz de lhe dar fim e cabo. Que seja! Coloco meu chapéu de caçador, presente do Holden, e, tal como ele, viro a aba para trás; aperto-lhe as mãos, levanto-me dessa floresta em que já permaneci tempo demais. Sei lá se foi carência ou coisa assim, abraço meu amigo por ter me encontrado antes que as feras me devorassem, mas ele não se contém e precisa, mais uma vez, zoar comigo:
-Ow, qualé? Sou doido é por mulher. No duro.
Não me contenho e rio, ele ri também. Agradeço sua presença e continuamos sempre em frente. Sinto um alívio estranho no peito, vai saber, acho que é por que, finalmente, estou voltando pra casa.

Eu tenho mais de vinte anos.


Meus vinte e um anos chegam cheirando a náusea, embalados por um jazz candente de botequim norte-americano nos quais nunca estive, menos ainda quis estar. Minha camisa tem um cheiro de perfume barato que não é meu, também não sei de quem é. Talvez de algum corpo enfadonho no qual me perdi. Meus vinte e um anos cheiram a bolor, os sonhos que nunca foram meus, realizei, agora é hora de uma licença Premium, muitos bons serviços prestados, e voltar a sugar dos outros sonhos irrealizados, para que os realizando, sinta-me mais que o outro. Dos fetiches que realizei, muitos nem me pertenciam, mas os gozei. Aqueles que não realizei talvez tenha sido por falta de vontade, ou por não me atraírem nem um pouco.
Saio de cena novamente, como sempre fui, mero expectador. Pra voltando aos meus doze anos, colher de folhas amareladas os prazeres que nunca esperei serem meus. Aos 15 comecei a me inserir no teatro, aos 20 sou diretor. Vou voltar a assistir às peças dos outros. Voltar a me colocar em detrimento de mim mesmo. Meus vinte e um anos se parecem com um desvario de drogado.
Eu me perdi em diversos corpos que sequer me pertenciam, ainda bem que foi assim, a sensação de pertencimento não me apetece, e mais do que não me apetecer, soa-me feito teoria matemática em que números irreais abarcam por fora os reais. Esse gosto amargo que eu sinto agora na minha boca é a saliva de alguém que se esqueceu de evaporar. Levo no meu corpo, como deveria, e é de direito, a marca de vários quilômetros rodados. Na memória, entretanto, não levo nada, está livre e leve como a falta de história que um recém nascido tem.
Não vou lembrar-me de nada, parece que agora sim eu acordo de verdade, saído de uma bebedeira, para acordar com uma amnésia alcoólica regada a muita ressaca. Dor de cabeça brava. Se for pra me lembrar de tudo que fiz há 4/6 anos atrás, mesmo que eu não o queira fazer, vai ser através do que me contarem os outros. Vai ser lendo nos corpos que já possuí minha história neles. Mas é o tipo de romance que não me agrada, feito livro de banca de jornal, romances da faxina. Sabrina, Verônica, Bovary, Mathieu, Werther. Amores transloucados que só nos servem para dar idéias. No meu caso, a leitura dos corpos, que fulgazmente já foram meus, só serviria pra me fazer não querer mais ter idéias.
Minha meia vida passada termina com um ponto de exclamação bem bizarro, os 16 futuros devem terminar feito clichê, reticências ou interrogação, não pressinto muito bem esse futuro ainda. Sei que será clichê. Amarei e terei medo de amar, brocharei e serei motivo de chacota para tantos quantos me gabei de uma grande atividade sexual. Meus amigos caçoarão da minha falta de movimento, começarei a virar ameba, completamente assexuado, com o mínimo possível de fluxo intelectivo, ausente mesmo. Reprodução por biparidade, através de textos estéreis. Morrerei triste com um copo de whisky na mão, um cigarro não fumado, mas inteiramente queimado, no cinzeiro. É incrível como, nem mesmo com visão tão drástica assim, meu coração consegue sentir-se mal. Essa ânsia que está presa na garganta, refluxo, vontade de vomitar sem conseguir por pra fora nada, é apenas a tristeza de saber que mais da metade da minha vida já foi-se embora.
O que me chateia, e muito, é que fujo da regra dos que vivem pouco e escrevem. Não tem copo de whisky aqui do meu lado, não tem cigarro acesso pra queimar o colchão e me matar flambado. Não tem carros em alta velocidade, não tem drogas pesadas, não tem nada. Essa é a ânsia. É a falta que sinto de não ter mais nada. O dinheiro míngua feito nordestino na seca, todavia, bebo muito mais álcool do que eles são capazes de fazer com água. O que consumo seria capaz de me montar uma pequena família feliz de indigentes. Um filho com o nariz escorrendo, fimose pra se operar, uma filha esperando pra me trazer um neto, uma esposa com candidíase, catarata e completamente frígida. Dando-lhes dinheiro contado, pra que na hora da chepa eles tenham algum resto sujo para a fome matar. Não, nem isso eu tenho, talvez seria feliz assim, ou não.
Eu sou filho de meu pai e de minha mãe. E faço jus ao título que carrego: Filho. Recebo por mês o que muitos da minha idade não conseguem suando. Estudei menos do que muitos que não conseguiram estar onde estou. Vivo menos do que muito homossexual que conheço e pelos quais nunca me apaixonei. Eu sou filhinho. Minhas preocupações são as tristezas hiperbólicas que me cismo de ter. Namorei menos do que os anti-sociais, e transei menos do que os crentes. Talvez eu seja uma encarnação edipiana sem conotação sexual, nunca sonhei com minha mãe. Talvez eu seja a Eletra que me aparece em sonhos tentando despertar em mim meu lado lésbico que tanto gosto. Talvez eu nem ao menos seja nada. A única certeza que tenho quem me informa é minha certidão de nascimento. Por ouvir falar nenhum conhecimento é certo. Mas eu tenho uma intuição intelectual de que seja verdade. Eu tenho mais de vinte anos.

12 janeiro 2009


Uti Possidetis

Se um beijo fere um coração dilacerado, um aperto bem dado destrói uma vida. Seguindo seu caminho desalumbrado ele seguia rente ao fio da navalha chamada vida. Os passos que pareciam bem dados na verdade eram esgueiramentos sossobrados. Respirava o ar da minha boca e me beijava com a língua de lamber. Sussurros frios e acalorados que nada me diziam, ou ao menos queriam dizer. Apertou me forte e prometeu ficar comigo, queimei a garganta mas soltei um eu te amo, e no momento era verdade, parecia que o amava. Não sabia entender o que se passava, a boca beijava um ente enquanto a cabeça pensava num ser. Entes primitivos da minha infância pairavam por sobre o ambiente calmo, desassossegado? Queria braços de abraçar, bocas de beijar e coração de amar. Tive um corpo de fazer sexo, uma voz de falar maldades, e uma língua de sorver aos borbotões, em goles ritmados, um copo de whisky quente. Pedi-lhe que se apaixonasse porque o platonismo de nossos desejos seria mais quente que o verdadeiro amor que não teríamos se nos tocássemos. Eu queria o colo de alguém que sabia que não poderia ter. E o não ter seria o mote principal para que eu verdadeiramente amasse. Queria amar. Queria amar estranhamente um estranho que nunca vi, mas tanto faz, contanto que fosse um novo amor prum ano novo que já me parece mais velho e requentado que a comida do natal que como hoje. Respiro e paro pra pensar. Pensar nos passos que escuto do outro lado do meu coração. Queria uma morte fria, caída, quedar-me de uma falésia em braços fugidios que me deixassem estraçalhar-me lá em baixo. Fiquei bem perto da beirada do meu próprio precipício. Peguei uma latinha de cerveja, amassei-lhe o meio, coloquei duas pedrinhas de meu diamante preferido, com meu zippo acendia por baixo, com a boca aspirava o ar amargo que diamanticamente me era dado. Fumava em jubilo o gosto amargo seu. A amargura de ter me deixado cair mais fundo que a fundura. O inferno é menos melancólico e quente que a sensação da senzala em que estou, açoitado por braços mais fracos que os meus, com um chicote que nem ao menos faz parte de um dress code. Mas tanto faz, gosto de apanhar e me deixo levar pelo açoitamento, quero me sentir um suíno depravado no abate, que guincha de dor quando lhe perfuram o coração com uma faca mais suja que bueiro de padaria de quinta. Quando perfurar meu coração quero esguichar pela boca o ópio do narguille de ontem. Quero soltar pelo nariz os quilos de pó branco, que a Liliane já não me serve pra nada. Quero soprar pra fora de mim as sementes de maconha que eu fumei.
Eu pulo do precipício que fui eu mesmo quem cavou. Criei com um sopro uma falésia em forma de garganta que eu senpre gostei de lamber. Uma nuca em forma de torso que acabava em abdominais prazeres mundanos. Sopro pra fora de você o beijo que eu queria me dar. Se te beijo não é porque te amo, é porque não tenho como me beijar. E eu queria, queria ser capaz de me beijar todo, tirar minha própria roupa e me ver despido em mim, eu mesmo em cima de mim mesmo numa dança em que candente eu soubesse apenas que não queria saber mais nada. Pedi o nonsense e ele se apoderou de mim, o que fazer agora, que quero de volta a razão, e ela não mais me quer? Queria amar aquela feminina que me largou em mim mesmo preso. Quero ser-me eu. Quero me ter de novo e de novo again. Não é amor, é vontade de ter a posse, e reclamar, através da uti possidetis, algo que é meu por direito. Um corpo que trabalhei nele. Que arei e plantei nele minhas sementes, meus lábios, meu corpo nu. Mas meu direito me é negado, não sou pessoa jurídica o suficiente pra reclamar um direito ao qual não me inere demandar.
Eu fico só, então, só eu comigo mesmo, ou quem sabe nem isso. Quem sabe o muito é muito pouco? Quem sabe quando eu falo que quero tudo e quero agora, na verdade eu queira dizer que não quero nada em hora alguma? Eu queria você comigo, num abraço desapegado que reclamasse o corpo meu.