30 junho 2009

A greve universal.

"... a universidade solicitou o envio de tropas de choque que destruíram as barricadas e prenderam todos os estudantes que ocupavam o campus. Não era um acontecimento excepcional na época, uma vez que casos semelhantes ocorriam com freqüência em outros lugares. A universidade, afinal, não havia sido desmantelada. Um grande volume de investimentos é canalizado para instituições de ensino superior, e seria pouco provável que as universidades viessem abaixo, sem reação, como resultado da violência de alguns estudantes. Mesmo aqueles que a obstruíram com barricadas não tinham a intenção de destruí-la. Pretendiam modificar o equilíbrio de poder da estrutura universitária, mas eu, particularmente, pouco me importava com isso. Então não senti nenhuma emoção especial quando a greve terminou.

Em setembro, fui ao campus na expectativa de encontrá-lo praticamente em ruínas, mas a universidade permanecia intacta. Os livros da biblioteca não foram saquados, nem as salas dos professores estavam destruídas, nem a sala dos estudantes incendiada. Perplexo, eu me perguntava o que afinal aqueles estudantes haviam feit atrás das barricadas.

Os estudantes que haviam comandado a greve foram os primeiros a assistir ás aulas quando estas recomeçaram, depois do fim da greve e sob a ocupação das tropas policiais. Apareciam nas aulas, tomavam notas e respondiam à chamada como se nada houvesse acontecido. Foi muito estranho, porque ninguém declarou o término da resolução de greve, que ainda estava em vigor. A universidade havia chamado as tropas de choque para destruir as barricadas, mas o movimento grevista supostamente continuava. Na hora de declarar a greve, os líderes falaram alto e animados, criticando severamente ou o oprimindo os estudantes contrários a ela (ou que exprimiam suas dúvidas sobre ela). Fui até eles lhes perguntar a razão de voltarem às aulas e não continuarem a greve. Não tive resposta. O que poderiam me responder? Estavam com medo de perder os créditos por causa do número de faltas. Achei graça ao pensar que haviam sido esses os mesmos estudantes a clamar pela dissolução da universidade. Bastava o vento mudar um pouco de direção e seus gritos se transformavam em sussurros.

Veja, Kisuki, a merda que é este mundo, pensei. Esses putos estão conseguindo todos os créditos e logo vão criar uma sociedade medíocre.

Mesmo assistindo às aulas, decidi não responder à chamada por algum tempo. Sabia que agir assim não levaria a nada, mas teria me sentido mal se não o fizesse. Mas, por causa dessa minha atitude, acabei me isolando cada vez mais dentro da turma. Meu silêncio na hora em que meu nome era chamado criava uma atmosfera desagradável entre os colegas. Ninguém conversava comigo e eu não dirigia a palavra a ninguém.

Na segunda semana de setembro, cheguei à conclusão de que o ensino superior era desprovido de qualquer significado. Resolvi entendê-lo como um período de treinamento para suportar o tédio. Não havia nada de especial que eu desejasse realizar na sociedade para me fazer largar tudo naquela hora. De modo que continuei indo diariamente à universidade, assistia às aulas, fazia anotações e, no meu tempo livre, ia para a biblioteca ler livros ou fazer algum trabalho de pesquisa."

NORWEGIAN WOOD - HARUKI MURAKAMI

Hermes Trimegisto

"Enraizar-se-á sob um asilo de loucos a mais 'sábia' das ciências."

Por que será que o que mais se teme é o fim do mundo? OU Pensamentos de um Homem-Bomba.


Eu estava assistindo a um filme em, em câmera rápida, que simulava como seria se víssemos do Big Bang até à extinção dos dinossauros. Fiquei angustiado e pensando em várias coisas:
I. A teoria evolucionista é realmente uma coisa muito frágil. Como se diz, foi apenas uma das muitas teses que, com a sorte, deu certo. Foi uma teoria que encontrou argumentos minimamente verificáveis, e, por tanto, agradou uma meia dúzia de ateus cansados do criacionismo, depois virou moda. A Mitologia da Ciência é tão forte e, nossas mentes, tal como foi a da Igreja na Idade Média, que não acreditamos poder recusá-la. Nos parece factual demais. Mas quando vemos o Balé dos Protozoários, suas multiplicações e evoluções, em câmera rápida, começamos a duvidar se realmente foi assim. Se tiver sido, que se erga uma Igreja ao acaso, que ele foi muito menos casual do que se poder crer.
II. E mais importante. Quando vi a extinção dos dinossauros senti um aperto no peito sem igual, gigante mesmo. Eu já venci o medo da morte tem muito tempo, mas o da completa extinção da espécie ainda não. E o medo de uma futura catástrofe, como a que eliminou os grandes répteis, percebi presente. Nunca que e aceitarei viver em um ambiente catastrófico, completamente impróprio para mim. Se for para morrer, prefiro me suicidar, por vontade própria, do que ser suicidado por fome, frio, ou todas as outras loucuras que um ambiente hostil instila.
III. Pensando em tudo isso comecei a pensar, e pensar. O que eu farei se acontecer uma catástrofe com a terra? Bem, encontrei um lugar que aceita o suicídio, ou melhor, recompensa-o desde que se leve junto várias pessoas. Pensei, pensei e concluí:
Se vier o fim do mundo, é melhor que eu aceite a teoria das quarenta virgens, afinal, como o evolucionismo, é uma teoria que, dada a situação, agrada demais.

26 junho 2009

Perdù




Bom-gosto
Mal-gosto
Dis-gosto

digostoso, mal dis-gosto a vida
e que vida?

saudade dos pequenos fluidos cerebrais
saudades apertadas
um peito mole e flácido
aperto em minhas pernas
o que nela deveria entrever
e subo cego uma parede
que nem sei se pode haver
quatro pernas
8 dedos
e um olho cego
nada... em absoluto
apenas o nada

do negativo ao positivo
eu apenas me esqueço de tudo.......
mas esquecer do outro não é nada
eu me esqueço de mim
mim mesmo sendo perdido
não mais no outro
perdido em mim

17 junho 2009

Peninha na Cabeça.


quando eu era criança, muitas foram as vezes em que, ao sentir algum odor desagradável, as famosas frases eram ouvidas: 'quem soltou um pum tá com uma peninha na cabeça.' ou 'quem soltou um pum tá com a mão amarela.'. muito ingenuamente, tendo soltado-o ou não, eu checava se algo de anormal se passava comigo ou não. era um tal de olhar para a mão ou coçar a cabeça, sem fim. e claro, logo eu era taxado de 'peidorreiro'. alguns anos depois eu vim a entender o mecanismo de 'coerção' das duas falas, que nada mais eram, do que uma maneira de obrigar o flatulento a fazer prova conta si mesmo.

mas isso foi anos depois, voltemos alguns anos atrás. depois de um certo tempo sendo 'pego' em tal 'brincadeira' entendi, erroneamente, que era só eu não checar coisa alguma e sairia, sempre, ileso. se eu soltasse ou não um pum, bastaria que eu não me manifestasse, ou seja, era só eu não olhar a minha mão, ou coçar minha cabeça, e deixar que outro fizesse, então tudo ficava certo.

a questão, em si, não é bem nada disso, só descrevi como as coisas aconteciam; mas o porquê de, sendo culpado ou não, eu insistia em checar as 'anomalias'.

Para essa explicação, o melhor é tomarmos o exemplo da peninha, uma vez que ela tinha o 'poder' de aparecer ou desaparecer. na minha cabeça, imaginariamente, a pena era uma entidade arbitrária e ela se colocava sobre o indivíduo que quisesse, sem a menor consideração. psicanaliticamente falando, a peninha, como representante de uma certa justiça, ou mesmo da justiça, e serviu de paradigma em minha vida, assim dizendo, para a idéia da própria justiça. Essa, tal a pena, seria uma entidade arbitrária, brincalhona, que não escolhia indivíduo algum movida pelos fatos, e sim randomicamente, a seu bel-prazer.

ou seja, não importava verdadeiro culpado, apenas a escolha que a peninha fizesse e, para que soubéssemos se éramos culpados ou não, a única maneira era levando a mão à cabeça e checando se possuíamos ou não a bendita sobre nós.

por outo lado, mais alguns fatos podem se depreender dessa histórinha. sempre que checássemos a cabeça do outro, outros, olhando para ela, por não enxergarmos a peninha, nos sentiríamos culpados. somos capazes de lançar os olhos sobre os outros, mas nunca sobre nós, (a não ser na presença de espelhos, mas seria nossa imagem, nós mesmos?, mas isso é outra conversa.) o que nos obrigaria sempre ao uso de outro meio que não o olhar. além disso, se tocássemos nossas cabeças, estaríamos imediatamente nos acusando. o que restaria a fazer? esperar, apenas isso; esperar que alguém se culpasse antes de qualquer outro e, assim, solucionasse-se a questão.

em tempo, a justiça nada mais é que uma entidade arbitrária que se diz postar sobre o culpado, mas esse, só é fielmente encontrado se se dispuser a entregar-se, em todos os outros casos, são inocentes que se fazem apanhar ao procurarem, em si, algo que não possuem, a saber, a culpa. mas não seríamos todos culpados de alguma coisa, e, por isso, na constante busca da peninha em nossas cabeças?




27 fevereiro 2009

Entuição

Entuição
Entua comigo as duas coisas seguintes
E pense agora na sua vida primária
Houve sexo?
Houve amor?
Pense no tarot que a cigana te leu
Houve sorte?
Houve desejo?
Sonhe com a cigana nua em seu leito
Estenda-lhe a mão para que seja lambida

As ciganas servem para revelar aquilo que queremos
Beije sua boca e seus olhos velvéticos
Imagine um clima transloucado e doido
Ela é cigana.... você passarinho
Acenda o pavio do estopim que estoura
Pense na sua vida passada em branco
Cante com a boca o que não sou do corpo
AME
AME
GEMA
Pense no ovo que você comeu e não virou passarinho
Pense no ovo que foi você e que não foi comido
Houve passarinho?
Pense nas noites em escuro
Nas noites tardias
Nas noites das gentes
Houve cigana?

Será que o ano novo dá adeus pras pessoas velhas?
Será que no ano que vem eu serei um novo eu mais velho?
Será?
Será?

Cala a bouca... pra que tanta coisa
a sorte é hj
O sexo é hj
O beijo é agora...
Adeus...
Adeus...

01 fevereiro 2009

Wilhelm Stekel

Começamos a andar pelas ruas frias de Nova Iorque, frio, muito frio. Para quem está acostumado com 20 graus no inverno; menos 20 é uma variação enorme, mas estávamos bem, digo mais pelo Holden do que por mim. Inveja. Ele todo garboso, com seu casaco de pele de camelo, cachecol, luvas da mesma pele que o casaco, sapatos finos. Alinhado. O coitado aqui se conformava com um moletom. Mas o andar me esquenta, e o sangue latino ainda mais. Paramos na Quinta com a Broadway, ele falou que o barzinho era bom, entramos, ele tinha dezesseis e eu quase 21. Pedi um Daiquiri, ele ficava puto, eu acertava nossos gostos como se acerta relógio atrasado. A conversa era boa, ele me achava interessante, o que era gozadíssimo pra mim. Pra quem sempre achava defeito nos outros e, de uma hora pra outra, resolveu me acompanhar contanto que lhe contasse minhas histórias, era de ficar fascinado. Ele me contava como quase tinha perdido a virgindade várias vezes, mas que no final das contas, ainda era virgem. Eu lhe contava meus feitos juvenis e o assombrava, contei-lhe de um sexo a quatro e ele me chamava de pervertido. Todavia, uma coisa nos unia, sexo... tinha que se ter amor, paixão ou éramos verdadeiros motivos de chacota: broxas.
Andar pela Quinta Avenida sempre é algo de especial, não importa quando. Imagine-se andando pela Paulista, é quase o mesmo, ponderando-se as dimensões do glamour. Mas tudo bem. Eu me sentia feliz como não me sentia havia muito tempo. Nos sentíamos ligados, era como se nos conhecêssemos há muito. Ele era meu irmão que nunca tive, eu me sentia seu irmão morto. Do muito que eu ouvia, muito mais ainda eu lhe censurava, ficava fulo da vida comigo. Me chamava de velho bastardo. Subiu em cima da mesa e em um pulo resolveu me dar uma gravata. Não entendia muito bem o que lhe causava tanto espasmos em serões. Mas eu sequer estava lhe julgando, só falava que desperdiçava a vida daquela maneira. Achava que todos éramos escrotos, e não afrouxava o braço do meu pescoço. Que seja. Que ficasse como mais lhe apetecesse. Acenei para o garçom, perguntou se queríamos mais um Daiquiri, sussurrei no ouvido do Holden que se ele não me soltasse, diria que havia um menor de idade na minha mesa e que sua noite terminaria ali, resolveu me soltar. Pedi-lhe seu Daiquiri, mas pra mim, já estava na hora do Whisky, ou melhor, já passava da hora. Mas vai saber, nunca é tarde quando se tem uma vida inteira.
Eu reclamava de minha mediocridade, ele reclamava da mediocridade dos outros, perguntava-me alto sobre mais casos sexuais em minha vida, não fica triste em lhe responder. Contava-lhe minha vida desgraçada e o que ele na minha vida começava a significar. Ele se mordia todo, falava que eu era um covarde e que o estava deixando deprimido. Eu lhe ria um sorriso torto, ele se contorcia todo em risos. Ele falava que minha vida era fantástica, eu dizia que ela me deprimia por ser como era. Ele me tecia os planos de morar numa cabana, eu lhe olhava de esgueio e dizia que não viveria sem meu chuveiro máster forte e quente. Começávamos a ver que éramos os iguais ao avesso. Queríamos o mesmo fim, mas cada qual traçava um caminho diferente. O meu era uma esteira rolante, o dele um verdadeiro lamaçal cheio de pedras e morros. “O legal da vida é sofrer pra conseguir as coisas, trabalhar por elas, lutar sempre.” Isso era o que me dizia, eu ria e valia meu deus. Ele achava graça em tanto que eu mencionava deus e se borrava todo de tanto rir. Eu achava graça no seu ódio pelas pessoas e em estar ali comigo. Ele falava que ficar só o deprimia. E não é que éramos iguais? Gostávamos da solidão permeada por gentes. Não lembro de muita coisa daquela noite, lembro da conta chegando em certo ponto, e nenhum de nós havíamos pedido. Lembro que constava sete Daiquiris e treze doses se Scotch. Não mais do que isso.
Partimos e resolvemos dar uma volta pelo Central Park, segundo o Holden, a noite no parque era ainda mais maravilhosa do que o dia. Ele me perguntava, parecia que eu devia ser a única pessoa a poder saber, para onde deveriam ir os patos que ficavam no lago que víamos em frente, quando a água congelava. Eu disse que não sabia, e que lembrasse que de onde eu vinha dificilmente a água congelava. Ele ria-se ao ver um “nativo” em sua frente, era assim que chamava. Mas eu falei que poderia fazer minhas conjecturas. Ele disse que as fizesse então. Perguntei-lhe se alguma vez havia visto alguma pessoa no parque cuidando dos patos, disse que nunca tinha visto, perguntei se ele já tinha assistido ao Pica-Pau, disse que sim. Conclusão: os patos do lago realmente migram. Kkkkkkkkkkk... nossos risos faziam parecer que a água do lago tremia. Sentamo-nos na grama e ficamos discutindo merda. Era bom encontrar alguém que gostava de conversa séria sem pedantismo e afetação. A conversa estava a tal ponto que chegamos a mesma conclusão, não éramos irmãos, não éramos namorados, sequer alguma coisa naquele momento. Éramos a encarnação um do outro, éramos a mesma pessoa. Ríamos. Começamos a nos dar conselhos. A falar de futuro e ele me veio com a metáfora que nos resumíamos. Queríamos ser alguém que ficava na beira de um abismo em frente a um imenso campo de centeio lotado de crianças a correr e brincar. Queríamos ficar na beira do abismo pra evitar que as pessoas caíssem nele. Queríamos ser apanhadores no campo de centeio. Salvar vidas destinadas à queda. Não éramos de todo mal. O perigo de ficar na beira de um abismo tentando salvar pessoas, é que a nossa própria queda as vezes se torna inevitável, e parecia que estávamos quase caindo. Então ele me disse a frase que mais me marcou até hoje, falou que era a frase de um psiquiatra, disse que diria a frase e iria embora, que já era tarde e meu novo tutor já estava chegando, arregalei-lhes os olhos e pedi que não fosse, ele disse que já havíamos nos contado muitas histórias e que o mal de contar é que sempre temos saudades das personagens no desfecho e que ele já estava saudoso demais de muita gente e queria as encontrar. A frase era a seguinte: “A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a característica do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa.” (Wilhelm Stekel)
Disse e partiu e eu fiquei ali, sozinho, em meio ao Central Park sem saber o que fazer. A lua já desaparecia e levava com ela meus olhos abertos. Dormi. Quando acordei ouvia uma língua gutural pra caramba, onde será que eu estava? Werther fez as apresentações, mais uma vez eu me sentia em casa.

30 janeiro 2009


Minha Comédia Divina

Quando eu crescer eu quero fazer alguma coisa em que eu possa apenas ficar lendo o tempo todo. Sem obrigação de escrever ou coisa que o valha. Uma década se passou e por incrível que parece não me havia dado conta que realizara meu sonho. Talvez meus sonhos recentes tenham tomado tal direção e gigantamento, que o que uma criança de onze anos pensava se tornou bizarro, enfadonho e nem um pouco digno de nota. Agora, todavia, que paro pra pensar, este ainda é meu sonho e única escapatória. Não nasci, pelo visto, e por milhões de constatações, para ser humano. Nasci para viver na idealização, numa forma inventada por mim mesmo. Sem corpo, pura alma pensante.
O caminho que segui, até encontrar a filosofia, agora me espanta, parece daquelas anedotas que os cafuçus da Bocaina contam. História fantástica digna de um Garcia Marques. Segui todos os passos que me levavam contra meu sonho, sonhei outros sonhos e cada vez mais humano eu ficava. Estou vivendo, velhamente, o mundo que jurava que evitaria.
Parece, agora, que me encontro acordando, prostrado, em frente a uma floresta sombria e nefanda e as feras, incumbidas de coibir minha andança, não parecem com o leão, a loba ou a onça. Será que Virgílio vem me buscar? Será que existe uma Beatrice, uma Virgem e uma Luzia intercedendo por mim? Não creio que meu guia pelos círculos do inferno será tão grande quanto foi para Dante o seu, ou melhor, não acredito em um inferno, um purgatório ou mesmo um céu, dignos, que motivar-me-iam a começar jornada alguma.
A jornada recomeça, estou saindo do internato Pencey, meu guia é um jovem de dezesseis anos, americano, metido a louco. E que todavia, sente tudo que sou. Se posso contar com alguém é com meu velho amigo Holden Caulfield. Se precisei abandonar meus sonhos para que só assim os realizasse, muito bem, a aventura sequer é dantesca, mas me parece que, bem acompanhado como estou, serei capaz de lhe dar fim e cabo. Que seja! Coloco meu chapéu de caçador, presente do Holden, e, tal como ele, viro a aba para trás; aperto-lhe as mãos, levanto-me dessa floresta em que já permaneci tempo demais. Sei lá se foi carência ou coisa assim, abraço meu amigo por ter me encontrado antes que as feras me devorassem, mas ele não se contém e precisa, mais uma vez, zoar comigo:
-Ow, qualé? Sou doido é por mulher. No duro.
Não me contenho e rio, ele ri também. Agradeço sua presença e continuamos sempre em frente. Sinto um alívio estranho no peito, vai saber, acho que é por que, finalmente, estou voltando pra casa.

Eu tenho mais de vinte anos.


Meus vinte e um anos chegam cheirando a náusea, embalados por um jazz candente de botequim norte-americano nos quais nunca estive, menos ainda quis estar. Minha camisa tem um cheiro de perfume barato que não é meu, também não sei de quem é. Talvez de algum corpo enfadonho no qual me perdi. Meus vinte e um anos cheiram a bolor, os sonhos que nunca foram meus, realizei, agora é hora de uma licença Premium, muitos bons serviços prestados, e voltar a sugar dos outros sonhos irrealizados, para que os realizando, sinta-me mais que o outro. Dos fetiches que realizei, muitos nem me pertenciam, mas os gozei. Aqueles que não realizei talvez tenha sido por falta de vontade, ou por não me atraírem nem um pouco.
Saio de cena novamente, como sempre fui, mero expectador. Pra voltando aos meus doze anos, colher de folhas amareladas os prazeres que nunca esperei serem meus. Aos 15 comecei a me inserir no teatro, aos 20 sou diretor. Vou voltar a assistir às peças dos outros. Voltar a me colocar em detrimento de mim mesmo. Meus vinte e um anos se parecem com um desvario de drogado.
Eu me perdi em diversos corpos que sequer me pertenciam, ainda bem que foi assim, a sensação de pertencimento não me apetece, e mais do que não me apetecer, soa-me feito teoria matemática em que números irreais abarcam por fora os reais. Esse gosto amargo que eu sinto agora na minha boca é a saliva de alguém que se esqueceu de evaporar. Levo no meu corpo, como deveria, e é de direito, a marca de vários quilômetros rodados. Na memória, entretanto, não levo nada, está livre e leve como a falta de história que um recém nascido tem.
Não vou lembrar-me de nada, parece que agora sim eu acordo de verdade, saído de uma bebedeira, para acordar com uma amnésia alcoólica regada a muita ressaca. Dor de cabeça brava. Se for pra me lembrar de tudo que fiz há 4/6 anos atrás, mesmo que eu não o queira fazer, vai ser através do que me contarem os outros. Vai ser lendo nos corpos que já possuí minha história neles. Mas é o tipo de romance que não me agrada, feito livro de banca de jornal, romances da faxina. Sabrina, Verônica, Bovary, Mathieu, Werther. Amores transloucados que só nos servem para dar idéias. No meu caso, a leitura dos corpos, que fulgazmente já foram meus, só serviria pra me fazer não querer mais ter idéias.
Minha meia vida passada termina com um ponto de exclamação bem bizarro, os 16 futuros devem terminar feito clichê, reticências ou interrogação, não pressinto muito bem esse futuro ainda. Sei que será clichê. Amarei e terei medo de amar, brocharei e serei motivo de chacota para tantos quantos me gabei de uma grande atividade sexual. Meus amigos caçoarão da minha falta de movimento, começarei a virar ameba, completamente assexuado, com o mínimo possível de fluxo intelectivo, ausente mesmo. Reprodução por biparidade, através de textos estéreis. Morrerei triste com um copo de whisky na mão, um cigarro não fumado, mas inteiramente queimado, no cinzeiro. É incrível como, nem mesmo com visão tão drástica assim, meu coração consegue sentir-se mal. Essa ânsia que está presa na garganta, refluxo, vontade de vomitar sem conseguir por pra fora nada, é apenas a tristeza de saber que mais da metade da minha vida já foi-se embora.
O que me chateia, e muito, é que fujo da regra dos que vivem pouco e escrevem. Não tem copo de whisky aqui do meu lado, não tem cigarro acesso pra queimar o colchão e me matar flambado. Não tem carros em alta velocidade, não tem drogas pesadas, não tem nada. Essa é a ânsia. É a falta que sinto de não ter mais nada. O dinheiro míngua feito nordestino na seca, todavia, bebo muito mais álcool do que eles são capazes de fazer com água. O que consumo seria capaz de me montar uma pequena família feliz de indigentes. Um filho com o nariz escorrendo, fimose pra se operar, uma filha esperando pra me trazer um neto, uma esposa com candidíase, catarata e completamente frígida. Dando-lhes dinheiro contado, pra que na hora da chepa eles tenham algum resto sujo para a fome matar. Não, nem isso eu tenho, talvez seria feliz assim, ou não.
Eu sou filho de meu pai e de minha mãe. E faço jus ao título que carrego: Filho. Recebo por mês o que muitos da minha idade não conseguem suando. Estudei menos do que muitos que não conseguiram estar onde estou. Vivo menos do que muito homossexual que conheço e pelos quais nunca me apaixonei. Eu sou filhinho. Minhas preocupações são as tristezas hiperbólicas que me cismo de ter. Namorei menos do que os anti-sociais, e transei menos do que os crentes. Talvez eu seja uma encarnação edipiana sem conotação sexual, nunca sonhei com minha mãe. Talvez eu seja a Eletra que me aparece em sonhos tentando despertar em mim meu lado lésbico que tanto gosto. Talvez eu nem ao menos seja nada. A única certeza que tenho quem me informa é minha certidão de nascimento. Por ouvir falar nenhum conhecimento é certo. Mas eu tenho uma intuição intelectual de que seja verdade. Eu tenho mais de vinte anos.

12 janeiro 2009


Uti Possidetis

Se um beijo fere um coração dilacerado, um aperto bem dado destrói uma vida. Seguindo seu caminho desalumbrado ele seguia rente ao fio da navalha chamada vida. Os passos que pareciam bem dados na verdade eram esgueiramentos sossobrados. Respirava o ar da minha boca e me beijava com a língua de lamber. Sussurros frios e acalorados que nada me diziam, ou ao menos queriam dizer. Apertou me forte e prometeu ficar comigo, queimei a garganta mas soltei um eu te amo, e no momento era verdade, parecia que o amava. Não sabia entender o que se passava, a boca beijava um ente enquanto a cabeça pensava num ser. Entes primitivos da minha infância pairavam por sobre o ambiente calmo, desassossegado? Queria braços de abraçar, bocas de beijar e coração de amar. Tive um corpo de fazer sexo, uma voz de falar maldades, e uma língua de sorver aos borbotões, em goles ritmados, um copo de whisky quente. Pedi-lhe que se apaixonasse porque o platonismo de nossos desejos seria mais quente que o verdadeiro amor que não teríamos se nos tocássemos. Eu queria o colo de alguém que sabia que não poderia ter. E o não ter seria o mote principal para que eu verdadeiramente amasse. Queria amar. Queria amar estranhamente um estranho que nunca vi, mas tanto faz, contanto que fosse um novo amor prum ano novo que já me parece mais velho e requentado que a comida do natal que como hoje. Respiro e paro pra pensar. Pensar nos passos que escuto do outro lado do meu coração. Queria uma morte fria, caída, quedar-me de uma falésia em braços fugidios que me deixassem estraçalhar-me lá em baixo. Fiquei bem perto da beirada do meu próprio precipício. Peguei uma latinha de cerveja, amassei-lhe o meio, coloquei duas pedrinhas de meu diamante preferido, com meu zippo acendia por baixo, com a boca aspirava o ar amargo que diamanticamente me era dado. Fumava em jubilo o gosto amargo seu. A amargura de ter me deixado cair mais fundo que a fundura. O inferno é menos melancólico e quente que a sensação da senzala em que estou, açoitado por braços mais fracos que os meus, com um chicote que nem ao menos faz parte de um dress code. Mas tanto faz, gosto de apanhar e me deixo levar pelo açoitamento, quero me sentir um suíno depravado no abate, que guincha de dor quando lhe perfuram o coração com uma faca mais suja que bueiro de padaria de quinta. Quando perfurar meu coração quero esguichar pela boca o ópio do narguille de ontem. Quero soltar pelo nariz os quilos de pó branco, que a Liliane já não me serve pra nada. Quero soprar pra fora de mim as sementes de maconha que eu fumei.
Eu pulo do precipício que fui eu mesmo quem cavou. Criei com um sopro uma falésia em forma de garganta que eu senpre gostei de lamber. Uma nuca em forma de torso que acabava em abdominais prazeres mundanos. Sopro pra fora de você o beijo que eu queria me dar. Se te beijo não é porque te amo, é porque não tenho como me beijar. E eu queria, queria ser capaz de me beijar todo, tirar minha própria roupa e me ver despido em mim, eu mesmo em cima de mim mesmo numa dança em que candente eu soubesse apenas que não queria saber mais nada. Pedi o nonsense e ele se apoderou de mim, o que fazer agora, que quero de volta a razão, e ela não mais me quer? Queria amar aquela feminina que me largou em mim mesmo preso. Quero ser-me eu. Quero me ter de novo e de novo again. Não é amor, é vontade de ter a posse, e reclamar, através da uti possidetis, algo que é meu por direito. Um corpo que trabalhei nele. Que arei e plantei nele minhas sementes, meus lábios, meu corpo nu. Mas meu direito me é negado, não sou pessoa jurídica o suficiente pra reclamar um direito ao qual não me inere demandar.
Eu fico só, então, só eu comigo mesmo, ou quem sabe nem isso. Quem sabe o muito é muito pouco? Quem sabe quando eu falo que quero tudo e quero agora, na verdade eu queira dizer que não quero nada em hora alguma? Eu queria você comigo, num abraço desapegado que reclamasse o corpo meu.