Monsenhor Ferreira
Nada mais era como devia ser. Ele se descobria através do buraco da fechadura, através do qual, ele via a si mesmo. Não era bonito, não era inteligente, sequer sabia escrever. Ele se passava por tudo isso, ele lia e materializava-se em si mesmo cada personagem fictício. Pelas aragens em que andava nos últimos tempos se recusava a comer o que quer que fosse que não houvesse colhido. Era-lhe um sufoco andar ruas e mais ruas atrás de comida. Encontrava um pé de amora e se outorgava todos os direitos sobre ele, o que a natureza me deu ninguém há de me tomar. Caminhando pelas cidades ele se defrontava com todos os problemas de sua nova vida, começou por apenas comer o que a natureza lhe dava, andava e andava atrás de pés de manga, goiaba, jabuticaba: frutas.
Ei muleque, o que você está fazendo trepado aí no meu pé de melância?
O que a natureza dá, é meu, ninguém mandou que plantasse minha comida aí onde plantastes. Ninguém, muito menos ainda, e com direito algum, pelo menos não natural, permitiu que plantasse no solo sagrado essas paredes grossas que me impedem de ir e vir. Você é um animal depravado, que passa fome por que aceita que outros passemos.
Vendeu seus pertences, vendeu sua dignidade humana. Com o dinheiro? Usava para acender o fogo que lhe servia de abrigo nas noites frias e solitárias da capital. Dormia o dia inteiro e quando não o fazia tentava a sorte vagando, sozinho, como todos devíamos ser, em busca de alimento.
Perdeu seu senso artístico, arte, para ele, era depravação que os homens se infligiam. Vendeu sua alma para o primeiro transeunte desavisado, que o encontrando nu, em plena marginal pinheiros, não sabia o que fazer com tremenda aparição. Na mesma marginal ele banhava-se, pescava alimentos podres, que seu paladar deformado já nem sabia mais entender, comia o que encontrava pela frente. Em plena marginal caçava capivaras, mas ainda assim se sentia pervertido, por que comer animais que sentem como eu? Ele ficava aturdido com suas próprias inquietações, mas as afastava. Pensar é algo que não faz parte da natureza humana. Humanizava-se no descompasso do dia-a-dia em que cada vez mais anti-naturais nos tornamos.
Seus primeiros medos primitivos começaram a assombra-lo. Sentado, no meio da devassidão, via luzes que passavam por ele, sequer imaginava o que seriam. Eram luzes que corriam, que se perdiam, luzes que ofuscavam a si mesmas. Ele não entendia, perdera esse dom, assitia, apenas, à passagem do tempo, não sabia mais o que era tempo. Dormia e, quando descansado estava, saía em procura de comida. Encontrava árvores frondosas em meio à Avenida Brasil. Subiu nelas com uma agilidade nunca vista, pegava algumas mangas, e sob a mesma árvore que lhe fornecia alimentos, descansava em sua sombra. Foi preso.
Não podemos aceitar um selvagem em nossa sociedade civilizada.
Não podemos permitir uma nudez libidinosa que atente aos nossos filhos.
Não podemos viver em meio a um ser que não tenha grilhões.
Tudo que ouvia era uma negação de sua própria negação em se perder mais do que já estava perdido. Na cadeia não se sentia mal, dormia boa parte do tempo. Ele já não sabia o que era a liberdade. Não precisava de outras pessoas, não precisava de conversa, sequer carinho, muito menos amor. Ele dormia e quando acordava tinha comida em sua caverna. Ninguém se alegrava em ver um selvagem sozinho em uma cela fechada.
Ele têm curso superior?
Por que ele come e bebe sem pagar por nada?
Por que ele não trabalha?
POR QUE ELE ACEITA TUDO ISSO?
Dormia calmamente, acordava e comia. Andava pelos espaços quando encontrava algum. Ele não tinha mais nada a perder. Ele era melhor do que qualquer um já havia sido em todos os tempos. Ele não dependia de nada e de ninguém. Os jornais noticiavam a incrível história do presidiário que debochava de todos os cidadãos. Comia às custas dos impostos, dormia idem, vivia idem. Ele era livre e todo mundo se irritava com isso. Em meio a tantas notícias de jornais começaram a aparecer lunáticos que pensavam o entender, criaram movimentos, queriam a liberdade. Outros diziam que ele era o messias que viera anunciar o fim do mundo. Havia aqueles que chegavam do trabalho tarde e resmungavam.
Mas por que ele pode viver sem trabalhar?
Querida, você não acha injusto eu trabalhar tanto e ele fazer tudo que faz sem ter que fazer nada por isso?
Vejam filhos, vocês falam em comunismo, é isso que vocês querem?
Foi solto no dia 23 se maio, um dia sem importância. Anistiado completamente. A ele foi permitido fazer o que quisesse desde que não incomodasse ninguém. Ele não sabia mais falar, nem pedir, quiçás desejar. Acharam por bem soltá-lo em meio à alguma floresta nativa e virgem, assim o fizeram. Corria nu por entre as árvores, não comia mais capivaras, apenas pinhões, maçãs, framboesas do mato, ervas que já conhecia desde sempre.
O mundo não admitia tanta liberdade assim, tentaram matá-lo por diversas vezes. Abafavam sua voz, segregavam sua imagem, psicos da vida tentavam provar que tudo o que ele queria era atenção e lhe podavam essa necessidade. No meio do mato ele corria. No meio do mato ele escutava a doce melodia de água correndo e não sabia sequer o que era, muito menos se era bom, ruim, bonito ou feio. Sua história corria pelo mundo. As pessoas começaram a imitá-lo. Em pouco tempo milhões desaprenderam tudo que dezenas de séculos de evolução os havia ensinado. Ele não estava nem aí pra nada disso. Corria, zunia, comia e dormia. Tudo em um estilo de passado que de nada ele entendia.
Em todo esse meio tempo ele começou a encontrar outros iguais a ele, não os reconhecia, saciavam seus desejos libidinais e iam embora. Os filhos que dessas gerações nasciam, permaneciam com as mães pelo tempo necessário até que pudessem se defender sozinho; só deus sabe do quê. Animais selvagens já não existiam, os humanos haviam matados todos. De si mesmos não precisavam mais defender-se, poucos eram os verdadeiramente selvagens. Quando os grandes líderes mundiais viram o caminho de liberdade que os homens estavam tomando, quando a Gucci parou de vender seus perfumes, a Channel seu corte de cabelo e a Dolce & Gabbana suas roupas, o mundo ruiu. Havia os verdadeiramente livres que andavam pelas florestas de pedra, nus; e os que ainda se chocavam com tudo isso. Na guerra de todos contra todos que os poderosos travaram, só os poderoso morreram. Os humanos não sabiam mais o que era lutar. Quando “pressentiam” o perigo, se escondiam. O mundo voltou a ser o mundo de antes de tudo. O homem voltou ao seu estado natural, mas tudo fora muito rápido. Ele, o primeiro, ainda tinha apenas 37 anos. Andava pelo mundo, não queria saber de ninguém, só andava.
Aos 37 anos ele era o primeiro homem desde muito tempo. Dormia, comia, se escondia. Encontrava-se com outros tantos seus iguais, mas sequer sabia o que era ser igual ou diferente. Ele começou a aprender que havia pessoas iguais a ele no mundo. A bola de neve voltou a se formar. Vestiu-se com folhagens, causou frisson. Usava colares, lançou moda. Construiu a primeira casa, virou arquiteto. Ele virou a todos e, depois de ter colocado alguns pedaços de madeira sobre um terreno, gritou:
Isso é meu. Foram ingênuos o suficiente e lhe acreditaram. Criou a sociedade civil.
O homem é mesmo um animal depravado.